terça-feira, 14 de setembro de 2010

Porções de Infinito*

Bibliotrama, 2008
acrílico e pigmento s/tela,180 x 140cm

O conjunto de pinturas que compõe a exposição Infinito  é o resultado de pelo menos três anos de trabalho constante em torno do imaginário poético suscitado por uma mesma matriz geradora: as noções de rede e suas tramas.
 
Tecitura,2008
acrílico e pigmento s/ tela
180 x 140 cm
Quando conversamos pela primeira vez, este projeto estava em fase inicial. Na época, Esther me mostrou um caderno repleto de esboços e anotações. Eram referências que abarcavam universos tão amplos quanto os mapas das cidades, os trajetos cotidianos, as malhas rodoviárias e aeroviárias, as redes de informação, comunicação e energia, as relações sociais, os afetos, as famílias, as árvores genealógicas, as artérias e veias, o cérebro, os tecidos, os ecossistemas, as constelações e galáxias, as relações entre os campos do conhecimento, as bibliotecas... Era uma lista que não terminava. De repente, o mundo todo se apresentava, para Esther, como trama de uma rede infinita.

Como traduzir em pintura estas anotações gráficas e as intuições que sua observação registrava? E como fazê-lo sem tornar-se excessivamente narrativa, esvaziando a potência do tema? Estes eram os desafios diante dos quais se colocava naquele momento.

Infinito II, 2009
acrílica e pigmento s/ tela
18o x 90cm


Ao percorrer as principais etapas da trajetória de Esther Bianco, não é difícil perceber que os caminhos encontrados pela artista para responder a estas questões já estão anunciados nos interstícios de sua produção anterior. Formada em Artes Plásticas nos anos 60, Esther tem uma atuação reconhecida em nosso meio, expondo seus trabalhos com freqüência e participando ativamente de projetos coletivos voltados para o fomento da produção artística local. Estas características, por si só, já dizem muito de seu interesse pelas relações humanas que a arte permite, viabiliza e informa. Em termos da sua dinâmica interna,  o processo criativo de Esther Bianco vem se ordenando em torno de eixos temáticos aos quais se dedica intensamente por um período determinado de tempo. Animais e plantas em suas transfigurações inconscientes, o feminino e o masculino com seus encontros e desencontros, arquiteturas, a água e temáticas relacionadas com a literatura gaúcha (como as obras relacionadas  à obra de Mário Quintana,  e ao Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo) são alguns dos temas de que já se ocupou. Para além da diversidade dos assuntos escolhidos, no entanto, é possível destacar algumas constantes entre os elementos e jogos formais explorados por Esther ao longo dos anos. Sua pintura é sempre rica em tensões entre figura e fundo, num universo onde manchas difusas, zonas de cor sobrepostas em veladuras buscam uma figuração de atmosfera quase sempre onírica.  É interessante observar em retrospecto, que as tramas, redes e estruturas em malha - elementos que vieram a assumir o papel de protagonistas nesta última etapa de trabalho - são recorrentes em diversos momentos anteriores da produção. Ora é uma trama ortogonal que aparece como plano de fundo de uma cena, ora é a textura que se constrói no entrelaçamento de cores e pinceladas, ora é a estrutura arquitetônica de uma fachada, ou então, as redes aparecem em versões bem orgânicas, como evocação dos movimentos da água. Nestas etapas, as tramas quase sempre emergiam subordinadas a outros elementos simbólicos de força narrativa mais evidente.
 
Virtualidade, 2008
acrílico e pigmento s/tela
180 x 140 cm

 Em algumas destas imagens, entretanto, as tramas agiam como mediadoras entre zonas  de estrutura claramente figurativa e zonas onde os limites das formas simbólicas se perdiam em manchas. É neste sentido que podemos dizer que o pensamento que se apresenta nesta última série de trabalhos já vinha se gestando há muito mais tempo. Silenciosas, as redes vinham respirando e ganhando vida própria nas arestas de outras tramas.  

É fato incontestável que a noção de rede permeia hoje quase todos os campos do conhecimento, das ciências exatas, às humanas. “(...)A noção de rede vem despertando um tal interesse nos trabalhos teóricos e práticos de campos tão diversos como a ciência, a tecnologia e a arte, que temos a impressão de estar diante de um novo paradigma, ligado, sem dúvida, a um pensamento das relações em oposição a um pensamento das essências.”[i] Quando uma idéia ou conceito adquire tamanha relevância para um determinado contexto cultural é comum que se observe também o efeito de uma certa banalização, ou esvaziamento de sentidos no tratamento do tema. Penso que um dos méritos da artista neste trabalho foi não cair nesta armadilha. Talvez a causa deste feito resida na entrega indiscutível de Esther ao seu trabalho. Sem nunca ter abdicado das linguagens com as quais estabeleceu um vínculo de empatia e intimidade desde os inícios de sua carreira - a pintura e gravura- e sem a pretensão de elaborar um discurso conceitual sobre a linguagem pictórica ou sobre o que quer que seja, Esther pinta  com paciência e com uma certeza sábia sobre a relatividade dos valores, discursos e formas. Decidida a viver a pintura como processo de auto-exploração contínuo, dá linha as suas intuições, nos convidando a compartilhar de latitudes infinitas.


Infinito I, 2009
acrílico e pigmento s/tela
140 x 70 cm

Seria improdutivo avançarmos em direção ao terreno interpretativo: sem dúvida a diversidade de ressonâncias e impressões poéticas provocadas por estas obras é a marca de seu frescor e correspondem justamente “(...) à pluralidade de caminhos oferecidos à autora durante seu trabalho de produção.”[ii] Pois nesta última etapa de trabalho,  as redes   tornam-se a forma preferencial de ativação do plano pictórico justamente para que este possa dar vazão a uma profusão dos jogos entre polaridades abertas. Em sua lógica complexa e multiforme, as redes de  Esther buscam expandir-se em planos  e pontos de vista múltiplos, enlaçando linhas e manchas, continuidades e a rupturas, o estático e o dinâmico, o orgânico e o arquitetônico, o visceral e o cerebral, a luz e a escuridão, o dentro e fora, a forma e o informe.  Não é a toa que Esther vai escolher nomear este conjunto com aquele que é talvez, o mais abstrato da família dos substantivos: infinito.


Perguntemo-nos apenas de que tamanho é o infinito? Uma pergunta pueril? Será possível   conceber em termos humanos uma coisa que não começa e não termina? A consciência se estende, se espicha até seus limites.  E resiste.  A percepção escorrega pelas tangentes da mente: a experiência do infinito nos é barrada corporalmente. Pensar o infinito nos desmede e derruba, depois  escapa. Mas por que não podemos apreender um universo infinito, não quer dizer que não possamos intuí-lo, sonhá-lo.

Termino trazendo à lembrança uma das mais fascinantes imagens do infinito produzidas pela cultura. Embora  a doutrina budista não faça parte do quadro de referências pessoais da artista, o mito hindu-budista da rede de Indra[iii] produz uma metáfora de alcance universal. Trata-se da imagem de um cosmos composto de uma rede  de reinos infinitos contendo reinos também infinitos, onde cada  ponto de conexão  da malha contém todos os outros. Para a doutrina budista  esta estrutura simboliza os conceitos de origem interdependente e interpenetração, segundo os quais todos os fenômenos estão intimamente ligados em um universo onde todos os membros têm relações  de afetação mútua, repetidas infinitamente.[iv]
Envolventes, 2009
acrílico e pigmneto s/ tela
180 x 90 cm


Francis Harold Cook descreve a metáfora da rede de Indra a partir da perspectiva da escola Huayan[v]  assim:

"Lá longe, na morada celestial do grande deus Indra, existe uma rede maravilhosa, que foi suspensa por um artífice astuto, rede esta que se estende infinitamente em todas as direções. De acordo com os gostos extravagantes do deus, o artífice pendurou uma única jóia brilhante em cada "olho" da rede; uma vez que a rede em si é infinita em dimensão, as jóias também são em número infinito.(...)Se agora  nós selecionarmos  arbitrariamente uma dessas jóias para inspeção e olharmos atentamente para ela, vamos descobrir que, na sua superfície polida  estão refletidas todas as outras jóias da rede, infinitas em número. Não só isso, mas cada uma das jóias refletidas nesta, por sua vez também está refletindo  todas as outras jóias, de forma que ocorre  um processo de reflexos  infinitos.”

Ainda que o  acesso à percepção de um infinito só nos seja  dado às porções, mediado por conceitos, símbolos e metáforas, as pinturas de Esther - como as jóias de Indra - tem a potência de fazer convergir tempos e espaços em um caleidoscópio  de relações sem fim. Um presente que se oferece à indomesticável vocação humana para um pensamento sem bordas.


 
Tramas e ramas, 2008
acrílico e pigmento s/ tela
180 x 140 cm
* Texto de Ana Flávia Baldisserotto, artista. originalmente publicado no catálogo da exposição Infinito, de Esther Bianco, realizada no Centro Cultural Correios, no Rio de Janeiro, de 16 de setembro a 21 de outubro de 2010.

[i] PARENTE, André(org). Tramas da Rede. Novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Ed. Sulina, Porto Alegre, 2004.

[ii]Valéry, Paul, Primeira aula do Curso de Poética. In Variedades. Iluminuras,  São Paulo, 1991.

[iii] A metáfora da Rede de Indra, também chamada “ as jóias de Indra» ou « as pérolas de Indra”,  desenvolveu-se nas escrituras Avatamsaka sutra da escola budista mahaiana e posteriormente na escola chinesa budista chinesa Huayan. O Avatamsaka Sutra é uma das escrituras mais importantes do budismo do leste asiático.

[iv] Lee, Kwang-Sae, East and West: Fusion of Horizons, Homa & Sekey Books, 2005.

[v] Cook, Francis H., Hua-Yen Buddhism: The Jewel Net of Indra, Penn State Press,1977.(tradução da autora)

Latitude
acrílico e pigmento s/ tela
70 x 90 cm




Energia, 2008
acrílico e pigmento s/ tela
180 x 90 cm



<>
Interface, 2008
acrílico e pigmento s/ tela
180 x 140 cm



quarta-feira, 27 de agosto de 2008